A maior de todas as taças

Pensei em contar esta história partindo do pressuposto de que coube ao Brasil de Pelotas consolidar a utopia de Juscelino. A Brasília criada pelo presidente que pensava ao longe, concebida para nos solidificar geográfica e moralmente como país, assumiu o papel centralizador de nossas safadezas. No país imaginário onde vivemos, só habita gente honrada e honesta, impedida de se tornar uma Suécia pelos inquilinos do Planalto Central.

Mesmo sem compactuar com esta visão simplista, vesti a camisa da Pênalti da temporada de 1998, a mesma envergada no jogo vencido em campo e perdido nos tribunais lá em Santo André, três espinhosos anos atrás. A opção pelo figurino da partida do rebaixamento refletia meu desejo de encerrar um ciclo sombrio e imerecido. Brasília ia enfim patrocinar a Justiça, pelo menos para um bando de brasileiros ao Sul do Sul. Bem, este era o roteiro mentalmente formulado. Mas o que houve na tarde de 19 de outubro de 2014 foi algo emocionalmente tão denso, que recorrer a um clichê seria desonesto – com Brasília e conosco.

Enquanto dedilho este texto, lá se foram 48 horas desde que, a uns 150 metros de distância, vi o Forster sacolejar a rede dos caras no pênalti derradeiro. Ali perdi os sentidos. Se meu peso não fosse medido em três dígitos, diria que levitei pelas arquibancadas. Quando recuperei a consciência, estava encostado no alambrado do Serejão, gritando frases desconexas de gratidão ao Rogério. Suponho que ele tenha entendido. E até agora estou aprisionado num pensamento incapaz de sair da órbita das emoções vividas no final de semana.

Lembro de um rapazote diante do Congresso Nacional, que, aturdido com a quantidade de gente com a camisa do Xavante, tomou coragem e me abordou.

– Tchê, sou de Pelotas, sou xavante, mas moro há muito tempo fora. Por que estão tantos de nós circulando pela Esplanda dos Ministérios?

Respondi enciclopedicamente e cassei-lhe o direito de se declarar xavante. Não existe xavante não praticante. Ou se é, ou não se é. Ponto. Cumpra-se.

Lembro do Vanderlei do Free Shop do Aeroporto de Brasília. Veio até nós, quando corríamos para não perder o voo de volta a Sampa, salivante, perguntando quanto fora o jogo. Revelou ser sócio do clube e praguejou contra o patrão, insensível a ponto de negar-lhe uma folga em dia estratégico. Mas estranhei a narrativa feita num pronunciado sotaque do Cerrado, algo entre o mineiro e o baiano.

– Sou de Brasília, mas vivi durante 16 anos em Pelotas. Voltei em abril para cuidar do meu pai, sou filho único. Quando botei os pés na Baixada, no final dos anos 90, desisti de ser flamenguista na hora.

Lembro da forma triunfal como irrompemos o Eixo Monumental na boleia da Kombi do Carlos Leite, colega com quem trabalhei no Vale dos Sinos 15 anos atrás e, a despeito deste distanciamento cronológico, ainda estava suficientemente perto para me buscar no aeroporto. No domingo, já o flagrei vestindo a camisa Wilson, temporada 2011, que lhe presenteei. Valeu, Leite!

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Céu de Brasília no dia do acesso

Lembro do meu ceticismo religioso fraquejando, quando, ansioso, despertei junto com o sol no Distrito Federal. Da janela do hotel, divisei o horizonte tingido de vermelho e preto, como atesta a foto. Não estou daltônico, né? Por favor, atestem minha sanidade mental e ótica! Se o João de Santo Cristo de Faroeste Cabloco ficou bestificado com a cidade, a cidade ficou bestificada com o Xavante.

Lembro, sobretudo, da mais linda reação coletiva vista por mim não só naquela tarde, mas em toda a jornada da quarta divisão. E falo como testemunha privilegiada. Fiz uns cálculos que, divulgados fora de contexto, poderiam inclusive abalar a solidez do meu matrimônio. Rodei 2,2 mil quilômetros e voei 1,3 milhas aéreas atrás do meu clube. Só divulgo os números com alguma segurança porque cheguei a eles sob a companhia carinhosa e paciente da Nêga Velha e dos meninos, por mim arrastados a Itu e Cabo Frio. Estou muito longe de ser o único. Sob os desérticos 35 graus com 15% de umidade de Taguatinga, identifiquei rostos que, um mês antes, estavam sendo acariciados pela brisa do mar na Região dos Lagos. Nunca estivemos tão firmes neste propósito de não deixar o Xavante jogar sozinho.

Falava da cena bonita. Pois bem. Logo depois da vitória, estive à beira de um desmaio, mas, agarrando-me aos sentidos sobreviventes, notei muitos sacando o celular e dedilhando com ansiedade. Quando alguém atendia do outro lado, desabavam em prantos.

– Só consigo lembrar de ti!

Lembrar, lembrar e lembrar. O escritor inglês Nick Horbny diz, em “Febre de Bola”, livro onde narra suas sandices pelo Arsenal, que a obsessão pelo futebol, sobretudo quando o clube ajuda a compor nossa personalidade, é uma manifestação de carência. Porque o que o sujeito deseja, lá no íntimo, é o conforto de sentir os outros lembrando dele ao saber alguma coisa do tal time. Hornby é um sábio. Inventamos obsessões particulares em razão do outro. São os humanos quem nos fazem mais humanos. A gente viaja longe para ficar mais perto.
Acho que a coisa é mais ou menos assim: o Xavante nos ajuda a amar. Não só ele, mas os outros.
E isto, meus amigos, creiam, é a maior de todas as taças.

*

Antes de encerrar, me permitam uma metáfora particular. Comecei esta viagem às 4h da madrugada de sábado, dia 18, na estação Sumaré do metrô paulistano. Viajei sozinho num vagão cortando as entranhas de uma cidade com 11 milhões de habitantes, coisa incomum. No domingo, perto das 19h do dia 19, embarquei no metrô de Brasília numa condição completamente diferente. Desci na estação Concessionárias, em Águas Claras, mas aquele trem jamais descerá de mim.

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A comparação destes dois momentos talvez seja o melhor jeito de representar como o Brasil de Pelotas preenche nossas vidas.

Fotos: arquivo pessoal

Fabrício Cardoso

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