Um grito explodiu no 15º andar na terra do capitão e do Wender | Fabrício Cardoso

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Goiânia conseguiu a proeza de transformar a matemática numa ciência inexata. As ruas da cidade talhada há pouco mais de 80 anos numa gleba poeirenta do Cerrado são predominantemente designadas por números. Mas isto está longe de ser um conforto para forasteiros recém-chegados. O taura vai caminhando, tão tranquilo quando o sol inclemente permita, e vê que a rua 10 é sucedida pela 11. Beleza, o cérebro se acalma com a provável previsibilidade. Confiante, abre um sorriso e avança até a próxima esquina quando daria de cara com a… 12? Errado. Ali é a 164.

Foi por coisas assim que não consegui serenar quando soube que o churrasco da Xavantes de Goiás, a Xago, seria, nas palavras do anfitrião Daniel, “na 1, acima da 10.” Pelo menos tive a sagacidade de confirmar o bairro, porque, talvez por megalomania dos colonizadores, existe muitas ruas 1 espalhadas por esta jovem capital. Sob a luz da lua azul (sem amarelo, porque não era segunda-feira), fui serpenteando as esquinas escuras do Setor Oeste, até chegar ao prédio compatível com a descrição do Daniel. Enquanto me aproximava da portaria, pleno de dúvidas sobre o endereço, ouvi um coro repentino explodir no 15º andar.

– Goooool! Porra! *@#@*&@*@@!!

Senti a perna afrouxar. Era o terceiro, do Leandrão, o da virada. Havia deixado a firma ainda embriagado com o balaço do Amado, garantindo o dois a dois até ali.

– Foi gol do nosso time! – gritei ao porteiro, que, confuso diante de uma frase desconexa, permitiu meu acesso.

Embarquei no elevador, naquele último estágio antes de amigos virtuais se fazerem de carne e osso. Desci na cobertura, onde o Daniel me esperava com um abraço e um beijo na bochecha.

– Viramos!!

Estávamos literalmente nas alturas, porque o Xavante tem esta propriedade de nos levitar, independentemente de estarmos no alto de um arranha-céu ou com o peso somado em três dígitos. A gente sempre alça voo quanto este time nos entrega um sábado como o de ontem.

Fui encaminhado a uma sala, onde a narração dos caras da TV Brasil pontificava. Cumprimentei todos, um por um, mas depois patrocinei uma grosseria que só xavantes são capazes de perdoar. Lembre-se que jamais havia encontrado pessoalmente ninguém ali, teríamos muito o que prosear. Mas, depois de breve inspeção visual, me vi entre os meus.

Então entreguei-me a este suplício que minha mina e meus meninos entendem como sofrimento teatral, mas que na verdade é uma reação natural do corpo às emoções em mim provocadas pelo clube. Fiquei arqueado, andando de um lado para o outro e, quando o juiz anunciou seis minutos de desconto, sai da frente da televisão. Contive o desmaio agarrado a uma grade perto da churrasqueira, até o apito final me devolver a capacidade de suportar a vida. E enfim desfrutar a companhia de gente por demais especial.

*

A Xago é a caçula entre os núcleos de xavantes desgarrados. Foi fundada em fevereiro do ano passado, naquele Brapel em que o Nena enfiou um testaço neles, em pleno salão de festas, quando eles ainda disputavam o Gauchão. Faz tempo, pois. Concentra gente com astral do saudoso Mafuá das Artes, embora seja de responsabilidade do leitor qualquer ilação com o consumo de drogas ilícitas.

Falo isto porque há um desprendimento vital entre todos. O Daniel, talvez o mais são, viveu anos em Israel. O Pablo tem formação em Artes e é professor de Museologia na Universidade Federal de Goiás, profissão que nenhum pai sonha para o filho, mas nós, pelotenses, eternos aspirantes a poetas, tratamos de ocupar quando aparece vaga por aí. O Gabriel fala como goiano, encurtando palavras, usando “trem” como sinônimo de “troço”, mas, por ter nascido em Pelotas, exerce com ardor o sacerdócio de ser xavante.

Uma comunidade tão diversa atrai pessoas igualmente plurais. A Roberta, mulher do Daniel, disse que nunca mais conseguiu simpatizar com outro time depois de estar no meio de nós, amém. Tanto que ela responde pelo setor de logística da Xago, com resultados questionáveis até aqui. Ano passado, para o jogo em Muriaé, eles fez todos pegarem um voo para BH, quando o mais estratégico seriam os aeroportos do Rio. Mas serviu para a Zona da Mata mineira conhecer uma torcida devotada, pois, se depender de Juiz de Fora e Tombos, eles estão na lama.

Tem ainda o Tariahn, advogado criminalista, mestrando em Direitos Humanos, um currículo que a turma que sai em passeata pedindo “impítima” definiria como protetor de bandido. Eu, que venho do astral do Mafuá, simpatizei com o cara. Torcedor praticante do Vila Nova, ele adotou o xavante como segundo time porque, segundo ele diz (não esqueçam que se trata de um advogado), somos muito parecidos na devoção sem grandes exigências em troca. Basta que o clube continue a existir de forma honrada.

*

Aliás, o Tariahn me fez refletir como os goianos se parecem conosco. A começar pelos filhos desta terra que são titulares de nosso amado time, o Wender e Leandro Leite. Ambos sintetizam a alma desta gente.

Aqui as pessoas são extremamente generosas, destas que, quando a cozinha do buteco se atrapalha e traz um prato antes do outro, ficam com o frio para que possamos comer o quente. Juro, recebi esta gentileza que, de tanta bondade, constrange. Wender e Leandro Leite também são generosos, pois correm, suam, deixam um pedaço de si dentro do campo e ainda servem os outros para um golzinho e outro. Tudo com uma altivez que nos emociona.

Também como Wender e Leandro Leite, em Goiás se trabalha com obstinação e disciplina e, salvo os sujeitos do sertanejo de shopping, sem almejar o protagonismo e conquistas continentais. É como se o sentido de tudo não estivesse nos fugazes momentos de sucesso, rapidamente sucedidos por fracasso, mas na satisfação de uma rotina desfrutada com leveza e celebração dos pequenos momentos.

Por isto eu jamais me canso de agradecer aos céus a glória de ter nascido xavante. Por mais distante que a vida nos leve, as coisas que nos fazem amar este clube sempre estarão presentes, evitando a solidão. Até mesmo quando a matemática não ajuda.

Fabrício Cardoso