O lado B do Castelanazo | Fabrício Cardoso

Se o irmão xavante espera mais um texto para a propulsão de confetes sobre nosso feito de sábado, advirto, melhor abandonar por esta frase, desde já. O que me traz aqui é um desejo, quase ingênuo, que a alegria transbordante nos eleve como seres humanos. Almejo que o triunfo do Castelão consolide o que verdadeiramente somos: um clube onde pobres e ricos, negros e brancos, gays que aturam futebol e héteros, analfabetos e doutores, se abracem em nome de uma cumplicidade centenária.

Temo, mediante dores intestinais, que nosso crescimento trucide este amor indiferente a contracheques, apetites sexuais e melanina. Tudo porque, na semana que antecedeu ao Castelanazo, nunca vi tanto esgoto brotando de nossas cordas vocais e da ponta de nossos dedos. Explodiu uma xenofobia expressa no desprezo ao sotaque (por sinal lindamente sonoro) do cearense, bem como ao fenótipo (procurem no Google) dos caras.

xava
Só tive ideia do tamanho da nossa degradação moral quando li de um amigo negro, por certo humilhado ao longo da vida num Estado bastante intolerante, talvez até por isto more fora, a seguinte frase:

– Chorem, cabeças-chatas, dependentes do Bolsa-Familia.

O chinês Sun Tzu, autor de A Arte da Guerra, sinaliza que um bom vencedor deve deixar espaço para a retirada do derrotado. Não parece que tenhamos lido coisas do tipo recentemente, justo nós, forjados na derrota.

Gente letrada, com cacife para pagar celular com internet, se orgulhou de passar por manifestantes da causa gay, gente que exatamente como nós tem a capacidade de amar contestada pela maioria bovina, e xingar todos de “torcedores do Pelotas, de UPP.” como se um e outro fosse ofensa.

Isto atingiu a mim em especial. Não por orientação sexual, sigo com desejo ardente por minha áureo-cerúlea. Sou casado, tenho dois filhos, mas não tenho mais idade de ter certezas. Se algum dia rever minhas mais caras convicções, quer dizer que não posso mais ser xavante? Me desculpem, mas piada assim é coisa de quem pixa muro em estádio alheio. É coisa de UPP.

Sei que o futebol é algo que flexibiliza nossas convenções sociais. Jamais chamaria de “filho da puta” uma atendente que errasse o troco, como já fiz com um juiz que nos afanou, ainda que involuntariamente.

Mas há valores que perpassam a emoção imediata, por mais que os inquisitores do politicamente correto esbravejem contra. Aliás, acho previsível que homens brancos, héteros e magros, que estão no topo de nossa cadeia alimentar moral, sejam os maiores opositores dos valores que acabei de defender.

Só lhes peço a grandeza de vencer o impulso de autoproteção, como nossos meninos tiveram a grandeza de vencer o Fortaleza.

Nós, xavantes, não temos o direito de atacar aquilo que nos faz querer estar juntos.