Por que não vou devolver a passagem | Fabrício Cardoso

Por Fabrício Cardoso

Um cansaço mental me aturde desde as últimas horas de 28 de março de 2018. O Pitol agarrou aquele pênalti do Zequinha e, horas depois, os caras se classificaram. Brasil e Grêmio na final. Começou ali um massacre verbal. Não que sejamos monges dado ao silêncio em resposta à violência, mas, como eles cooptaram metade do Estado, cada um de nós teve de esgrimar com centenas nas redes sociais. Justo eles, tão soberbos, donos de glórias continentais, não pouparam latim contra os negrinhos da estação. Salivavam, urravam pelo Ruralito.

Não me cansou a flauta, temos um couro endurecido há 107 anos. Foi o argumento que me deu náuseas. Vieram em enxame nos atribuir insignificâncias numéricas. Sou campeão disto, daquilo, diziam eles. Uma vida miserável de contador, como se o sucesso explicasse a paixão. Cansei, porque me soou como se alguém tirasse um extrato bancário para assegurar a própria importância.

Seria patético, não fosse digno de dó. Esses toscos têm sentimentos, sim. Não os tirem por mau caráter, apenas. Só não sabem verbalizá-lo num mundo onde qualquer idiota tem uma folha em branco na internet. Nessa incapacidade cognitiva e intelectual, recorrem às estatísticas, coisa estéril, feita para amainar paixões. Trata-se de algo bom em quase tudo, exceto no futebol, onde a beleza mora no imponderável.

Quem teve paciência de contrapor com alguma clareza sentimental a gremistada salivante, foi taxado de colorado – o último argumento de uma aldeia binária, incapaz de reconhecer qualquer coisa que não seja hegemônica. O Rio Grande do Sul deve ser o primeiro do País em ensino da matemática diante da facilidade com que números vêm à tona para os lados de Porto Alegre.

Fiquei tão comovido com a pobreza espiritual dessa gente (não confundir com todos os gremistas, sou amigos de muitos legais e articulados, talvez a maioria que faça, ainda bem, parte da minha vida), que louvei à bênção dessa doença hereditária que me foi passada por meu velho. Não tenho a mínima tenacidade para participar desse duelo de poder eterno entre gremistas e colorados. É menos sacrificante ir a pé do Aquário ao Laranjal duas vezes ao dia, correndo descalço.

Não que sejamos santos. Embora a turma da capital se preste a pastiche de torcidas castelhanas, somos nós quem, talvez pelo que resto do ar soprado do Prata sobre Pelotas, empinamos o peito na iminência de algo bom. Por exemplo: achei de mau gosto tratar os caras por Gaymio no cartaz para as excursões. Não só porque, em 2018, xingar alguém de gay soa tão antiquado quanto usar MSN, mas porque elevou a fervura da imbecilidade dos adversários. Para quem  se ofendeu do lado de lá, não há nada de errado em urdir xingamentos com base na orientação sexual. O errado é um pelotense, veja só, fazer isto. O xingamento, além de escroto na essência, fez transbordar o esgoto deles em nossas time lines.

Também não achei graça, embora muitos xavantes tenham gostado, no tratamento do shopping, quer dizer, estádio dos caras de Arena OAS. Sinceramente, me parece um discurso patrimonialista demais para quem aspira coisas mais etéreas de um clube de futebol. Se o Grêmio tem a escritura de sua cancha, esse é um problema em Porto Alegre, Caxias, Santa Maria e demais rincões colonizados. Jamais em Pelotas.

Ok, sei, haverá discórdia, mas reside aí minha mania de grandeza com relação ao Xavante. Adoraria um Brasil de Pelotas moralmente grande, sem homofobia, sem atenções prediais, sem gente disposta a descarregar a decepção em socos no adversário, ainda que este nos chame de macacos. Mas também estou velho para acreditar na integridade de uma multidão sem ter nascido na Suécia ou  na Noruega.

Por fim, não darei “no show” na passagem comprada para próximo domingo, tampouco tentarei transferi-la para outro destino. Se de fato somos mais sensíveis que os trogloditas que contaram taças nas últimas 72 horas, não há nada que nos desvie da Baixada no próximo domingo. De casa até lá, e de lá até em casa, percorrerei 4,5 mil quilômetros com a certeza de que voltarei sem a taça.

É hora de mostrarmos como se festeja um amor em português e com samba, combinação que parece meio fora de moda lá nos lados do  futuro campeão. Vou com a convicção de que, se esperarmos mais 63 anos por um domingo com este, meu netos saberão que não me ausentei por comodidade ou excesso de quereres.

Caso contrário, seria gremista. Ou, melhor ainda, Real Madrid. Em ambos os casos, empunharia uma calculadora quando alguém viesse falar de futebol.

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