Arquivo da categoria: Artigos

Restou um vidro entre nós | Fabrício Cardoso

Numa segunda-feira de agosto, meu oitavo dia de lutas contra o vírus que nos desgraçou, o ar rareou. Uma ardência derretia o peito cada vez que eu inspirava de forma profunda. Sentando na cama, enquanto pensava no que vestir para ir ao hospital, fui mentalmente pontuando providências para o caso de eu precisar me ausentar – por uns dias ou para sempre.
Para tudo havia estratégias simples, porque a gente não é tão imprescindível quanto imagina. Já no Uber que me levaria ao pronto-socorro, porém, uma pena de mim mesmo foi aflorando. Morrer aos 47 anos implica, com certo otimismo, a perda de 30 temporadas do Xavante. Não tem como a alma serenar diante dessa possibilidade.

Isso explica porque, num sábado de setembro, caminhei as três quadras que separam minha casa do Estádio da Serrinha com um entusiasmo incompatível com a temperatura de mais de 35 graus, a umidade de menos de 30% e os 16 pontos que nos jogam na lanterna da Série B. Para qualquer um de nós, torcer para o Xavante sempre foi um triunfo contra o senso comum, contra o dominante apetite por glórias passíveis de Excel. Pois naquele dia 18, para mim, somava-se o triunfo sobre a pneumonia que me lastimou 25% dos pulmões mas que, por obra da vacina, da Medicina e do amor de muitos, não interrompeu meus dias de testemunha do meu clube.

Como não havia ingresso à venda para visitantes, entrei no estádio na cota da delegação do Brasil, o que me adicionou uma camada a mais de sentimentos. Quando soube que quem me entregaria a credencial era o Hélio Vieira, experimentei um misto de alegria e tristeza. Como desfrutar da companhia do nosso zagueiro de 1985 sem contar a meu pai, que se foi ano passado, depois de 72,5 temporadas do Xavante?
O Hélio habita a esfera do sagrado. Obviamente, quando alguém resolve arregaçar a manga e trabalhar pelo Brasil, se põe no lugar de ser criticado. Não há santidade na rotina. Talvez por estar longe de Pelotas, porém, me dou o direito de achar exagerado o azedume dirigido a quem nos legou orgulhos eternos. Estava ali, vi o olhar dele perdido à beira do gramado da Serrinha. O sofrimento não é cativo do torcedor.

No vestiário, onde estive, vi a nudez do grupo – literal e metaforicamente. Antes da partida, havia um semblante de alguma leveza, suponho pela despressurização provocada pela distância depois de 10 dias numa Pelotas imersa em chuva, desgosto e insatisfação. Ouvi lástimas pelos pontos que estavam na mão e escaparam feito dinheiro em vendaval: o gol de cabeça do Vasco em São Januário, a virada em 5 minutos na Baixada, o empate do Avaí com um a menos em Floripa, o pênalti perdido e a virada permitida contra o Operário em Ponta Grossa.
São coisas que passavam pela cabeça ali, minutos antes de o Oliveira arremessar a si mesmo nas costas do atacante do Goiás e entregar um primeiro tempo onde peleamos corajosamente, de igual para igual. É pelo somatório de bobagens assim, impossíveis de serem debitadas apenas da conta do azar, que, depois da primeira derrota para o Goiás em 110 anos, o pagode silenciou, o riso sumiu e a reza do Pai Nosso e da Ave Maria prevaleceu, entre gente agora com o mesmo olhar do Hélio à beira do gramado.

Como eu abusava da intimidade a mim concedida, resolvi partir. Enquanto girava a chave do vestiário para ir embora, ainda ouvi o Cléber pedir para que todos juntassem os caquinhos e mirassem no jogo contra o CRB, agora terça-feira, quando voltaremos para casa depois de 569 dias de arquibancadas emudecidas.

– Vamos nos preparar para vencer, por eles e por nós – ainda escutei, ao fundo.

Do discurso do Cléber, me ficou a figura de linguagem dos caquinhos. Como o Goiás é um clube provedor de confortos, vi o Xavante dentro de um camarote, com um vidro entre mim e campo. Aquilo isola cheiro, frio, calor, o som fica abafado e a visão impõe seu império, reproduzindo a experiência de cara no sofá. Depois de uma morte que se mostrou felizmente imaginária, e de um ano hediondo como esse, estou certo de que o Xavante precisa ser compreendido de um jeito que o Padrão Fifa não responde.

Façamos caquinhos de tudo aquilo que nos afasta de sermos quem somos.

A tarde em que a gentileza quase nos mata | Fabrício Cardoso

Nunca imaginei que gentileza pudesse ser um problema. Mas dessa vez foi.

Quando o Uber nos deixou na porta do Oba, o aconchegante estádio do Vila Nova encravado no bairro que empresta nome ao clube, estávamos na penúltima das 14.952 horas de uma fome.

Estou longe de Pelotas há mais de duas décadas e jamais havia passado 623 dias sem ver o Brasil jogar do jeito que essa paixão exige: na arquibancada, com a respiração entrecortada cada vez que nos atacam, com alívio e esperança quando recuperamos a bola e um orgulho desmedido quando alguém, com nosso distintivo ao peito, vai para uma dividida como se estivesse salvando um filho.

Não é portanto uma tarefa emocional para se cumprir naquele silêncio polido que os cafonas pretensiosos acham elegante. O Xavante em campo diante dos olhos provoca uma agitação interna tão intensa que, sem uma despressurização pelas cordas vocais, corre-se risco de um colapso.

Foi por saber dessa condição fisiológica que praguejei contra o sorriso aberto da direção do Vila Nova ao nos receber na porta do estádio.

– Que alegria tê-los aqui!

Numa cordialidade excessiva até para goianos, essa gente comoventemente gentil, fomos levados à tribuna, honraria prontamente aceita porque o sol do Cerrado começava a arder com a violência costumeira. Uma sombra cairia bem.

Além da cadeira mais confortável do estádio, puseram uma caixa térmica com água e gelo ao alcance da nossa mão. Dali, dava para ouvir as rádios locais já em transmissão. Num dado momento, o narrador disse que o Vila ia pegar “o fraquíssimo Brasil de Pelotas”, ou seja, duas ofensas na mesma expressão. Os conselheiros deles pouco faltaram nos pedir desculpas, constrangidos.

Definitivamente, não havia como seguir a liturgia xavante de arquibancada sem parecer grosseiro com o anfitrião. Sinto que passei uma tarde comportado como desejou meu pai, numa tarde em que quase fui linchado pelos gremistas por excesso de exaltação no falecido Olímpico, lá pelos anos 90. Ou pela minha mina, cujos olhos se cobriram de terror ao me ver escalar o alambrado da Baixada transtornado depois de um gol nosso num amistoso contra o Fluminense. Pô, mas era o Fluminense…

Bem, sobre o zero a zero, sofri com o Pierini improvisado e senti uma certa vibe de Diego Ivo no Arthur, esse guri de Minas que estreou na nossa zaga. Se mantiver essa solidez na defesa, talvez dê para imaginar sorte melhor.

Esse negócio de torcer para o Xavante é um desassossego permanente. Faz a mente oscilar entre os papéis que nos impõe. Em alguns momentos, considero um atrevimento tremendo ver nossos meninos fardados em canchas de Copa do Mundo, fazendo 39 vezes por temporada o trajeto até o aeroporto de Porto Alegre e isso tudo basta a mim, que vi jogo em Camaquã e Rio Pardo.

Mas também penso se essa minha resignação não é uma visão limitante das nossas possibilidades, porque, a despeito das dificuldades impostas a um povo mestiço num Rio Grande orgulhoso de purezas imaginárias, somos capazes de grandes coisas em Pelotas. Se na arte e na ciência conseguimos romper as barreiras da pobreza com talento, talvez no futebol, com lampejos de sorte e coragem, dê para ir além. Talvez.

No meio dessas dúvidas todas, me veio uma certeza. Só pude ver o jogo no estádio e interromper o jejum desse sentimento que me nutre a existência graças ao convite da direção do Brasil, a quem sirvo com textos esparsos, para necessidades específicas do clube. É algo que sempre fiz com sentimento de dever, porque o Brasil a gente não ajuda. Cuidamos porque é nossa obrigação.

Uns 30 minutos depois de deixar o Oba, quando já estava com meu filho Inácio entupindo as artérias num podrão das adjacências da Vila Nova, recebo uma mensagem de Whatsapp.

– Boa noite, Fabrício, muito obrigado pela companhia.

Era do presidente Nilton Pinheiro, leitor de Hermann Hesse, que dedicou a vida profissional a levar luz para os gaúchos e portanto não se mixa para qualquer escuridão.

O Brasil é assim. Até em anos mais angustiantes, sempre dá muito mais do que entregamos.

Trazendo muitas possibilidades na bagagem | Alice Silveira

por Alice Silveira

O Brasil conquistou, com um gol da jovem promessa Danilo Gomes, a sua primeira vitória fora de casa contra o Botafogo-SP na noite de ontem. Mas trouxe muito mais do que “apenas” três pontos na mala de viagem de volta para Pelotas.

Aos poucos, o Xavante vai selando o desfecho de um trabalho minucioso que vem sendo construído desde a chegada do comandante Hemerson Maria.

Trazendo um estilo de jogo mais racional e consciente, diferente de tudo que já foi proposto nos gramados da Baixada, Hemerson moldou aos poucos – bem aos poucos – o time que queria ter em mãos. Foi preciso paciência com o professor.

Deixamos o homem trabalhar, felizmente! Contrariando a máxima do futebol brasileiro de demitir o treinador após uma sequência inicial de tropeços, vimos o Brasil de Hemerson tomar forma gradativamente.

Primeiro, ajustamos a defesa. Perfeito. Hora de olhar para o ataque, algo ainda não está cem por cento nos conformes na transição. Trouxemos peças novas, jovens, gás na equipe que já mostrava sinais de cansaço sem mal ter dado a largada.

Evoluiu! Uma sequência de quatro jogos de invencibilidade na Série B, três vitórias e um empate. E mais do que isso, muitas, eu digo, MUITAS possibilidades.

Um mundo de infinitas possibilidades parece estar nas mãos do torcedor rubro-negro vendo o Brasil de Hemerson Maria tocando bola tranquilamente em campo, na casa do adversário, aos 45 do segundo tempo.

Dá para sonhar com permanência na Série B? Mais do que nunca. Dá para sonhar com acesso pra série A? Ora essa, por que não? Seja feliz. E sonhar com Tóquio? Não custa nada, há quem já tenha almejado feitos mais impossíveis.

No brilho do olhar do torcedor que vê o futebol do nosso time HOJE, nem o céu é limite para nós e a nossa bagagem de possibilidades.

Foto: GE.Globo

Resgate

Por Xavante Munhoso

“… Hum… Baaaáh! É brabo tchê! Éééééh. Porra! Negão de camisa vermelha no meio da Torcida do Brasil foi ele. Poh! Não vai achar nunca. Hoje já tá mais difícil hém cara. Desculpa, não é, não é menos prezar os negros não, de forma alguma cara, mas hoje a Torcida do Brasil tá muito elitizada cara. Tchê! A gente não vê mais aquele negro; o negro raiz; aquele negro da vila. Não se vê mais cara. Vou te dar um exemplo. Ooh Schuank mesmo aqui ooh Luciano e Fontoura e o Ademar que tá aí, nos escutando. Oooh Schuank uma vez nos levou… Em Caxias oooh Fontoura, tinha um negrão que trabalhava aqui na estiva aqui no porto e ele ia assim óh, ia a ferro. Sem dinheiro, sem nada, mas tomava um baita dum trago. Aí nós viemos… e agora Schuank? Como é que vamos fazer com esse homem? Eu eu eu tenho, eu consigo o dinheiro para a entrada e o Schuank, não eu pago o almoço. Aí nos fomos, cara. Nós fomos ao restaurante e botamos ele na cabeceira. Ele tinha tomado tanta cerveja com nós, bebida, cachaça. Cara, e aí o Schuank serviu uma sopa de capelete pro cara, tchê. Quando eu vejo, poh, são as coisas que digo: tum! E vejo aquilo líquido saltar. Eu olho poh o negãozinho me deu com o rosto dentro do prato da cumbuca de sopa lá e não conseguia se levantar. Ia se afogar na sopa. Tchê! Esses caras aí óh; esses caras sumiram. Sumiram. Sumiram no mercado. Sumiram da Torcida do Brasil, cara. Infelizmente. É esse Torcedor, é esse tipo de Torcedor, aquele. O mais humilde, o mais pobre, o mais necessitado. Aquele Torcedor laaaaá do meio da vila. É esse aí que nós temos que resgatar. E eu não me importo cara, de pagar a minha mensalidade. Pagar setenta pila que seja, ou cem pila que se pague e que eles paguem dez pilas por jogo. Eu não me importo cara. Eu quero ver eles de volta ao Estádio. E não quero que eles fiquem desprivilegiados lá prá trás da goleira. Eu quero que eles tenham acesso ao Estádio. Porque foram ELES que fizeram o Brasil ser o Brasil que é hoje.”

Isto é parte de uma roda de conversa on-line onde João Damasceno nos dá esta demonstração de amor à Torcida Xavante. Aquela, pé no chão, troco suado, mas de amor incondicional ao G. E. Brasil. Gente que muitas vezes deixa de comer só para estar presente nas Arquibancadas do Bento Freitas.

Resolvi transcrever esta manifestação com a intenção de tocar alguns corações que não enxergam a aflição daqueles que foram alijados dos campos de futebol e em especial do Caldeirão Xavante.

Ah! E não me venham com argumentações do tipo o “futebol está caro” porque é público e notório que as rendas de Bilheteria vêm gradativamente sendo substituídas por patrocínios, verbas de federações, da CBF e de TVs.

O dinheiro pode muito bem ser compensado por ações de marketing e boa gestão, mas o calor, a vibração e a raça de uma Torcida não.

Pensem nisto e passem a clamar por ações que tragam de volta ao nosso Bento Freitas aqueles que, tijolo a tijolo, grito a grito, construíram “A Maior e Mais Fiel Torcida do Interior”.

Foto: Vitor Hugo Lautenschlager

Visão

Por Xavante Munhoso

Hoje quando eu entro no Bento Freitas o que vejo? Jovens torcedores, obras, competições, eleições. É o futuro se desenhando quieto, mas sagaz. Uma ânsia matreira que cobra cada vez mais um passo forte e decisivo rumo ao encontro dos grandes do futebol brasileiro.

Vez por outra um sonho maluco de reeditar oitenta e cinco quando Silva, Lívio e Andrezinho davam aula de futebol para o País inteiro. Num flash também Claudio Milar chega para bater aqueles escanteios inconfundíveis para desespero dos goleiros adversários.

A Torcida, ah! Esta una e absoluta cantando “Vai dar trabalho! Vai dar trabalho! O Rubro Negro joga bola…” Até a Brigada está ali, atenta, alinhada; um cordão humano cumprindo o seu papel.

Às vezes, caio na real e sinto as mudanças que o tempo impôs. As regras mudaram. Minha garganta já não tem a mesma força e o grito agora é manifestado através de pensamentos registrados em blogs e páginas da internet.

A cobrança é maior e a responsabilidade de passar aos que agora chegam toma ares de conflitos. “Ele tem seu passado de glória” e não podemos deixar as conquistas de outrora cair no esquecimento.

Daí, meus olhos repetem o mantra que me mantém vivo: jovens torcedores, obras, competições, eleições. E minha alma se acalma na certeza de um futuro promissor.

Mas já já tem jogo; depois outro; e outro. Os adversários, cada vez mais fortes e é preciso achar forças para continuar a magnífica História que Breno Corrêa da Silva e Salustiano Brito iniciaram lá em sete de setembro de mil novecentos e onze.