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Goiás viu nascer o budismo xavante | Fabrício Cardoso

Talvez como compensação pelas lonjuras do oceano, Goiás é um Estado cortado por rios largos e caudalosos. Quem já despertou numa manhã de geada para encarar uma aula de geografia ou história, por certo já ouviu falar no Tocantins ou no Araguaia. Itumbiara fica às margens do menos famoso deles, o Paranaíba. Mas não é por falta de formosura que a existência deste veio d’água é sonegada a nós, pelotenses. O leito cristalino, de tom algo azulado, corre calmo e exuberante, roçando também as areias das Minas Gerais, lá na outra margem. Foi com o olhar perdido no lento avanço do Paranaíba rumo a um mar distante que encontrei um ensinamento para sobreviver, com um mínimo de compostura mental, a este 2016 que o Xavante nos enfiou.

Quando pego a estrada atrás do G.E.Brasil, sinto-me a caminho de uma batalha letal. Como resposta a anos de campeonatos curtos e letais, meu corpo reage como se um predador estivesse à espreita. Sinto palpitações, suadouros, meu pensamento não consegue sair da órbita do jogo. Minha mina, a Mônica, áureo-cerúlea não praticante (com o perdão do pleonasmo), insiste em me acompanhar nestas andanças. Faz isto pelo amor que nos faz querer estar juntos, todo dia, há 16 anos. Mas, num dado momento da viagem, ela sempre adverte nossos meninos.

– Seu pai está aqui só de corpo presente. Não adianta falar com ele.

Na sexta-feira, quando o sol se punha em Itumbiara, de fato me perdi em pensamentos. Mas meu silêncio estava mais ligado a serenidades do que a nervosismos. Ao chutar a porta e se meter num campeonato com 38 jogos, de maio a novembro, nosso clube nos deu a chance de desacelerar o espírito. A fronteira entre a vida e a morte está larga como o Paranaíba, o Tocantins, o Araguaia, a Lagoa dos Patos. A derrota continuará a ser um tropeço, mas na calçada – não mais à beira de um precipício.

Cheguei assim, numa vibração de monge tibetano, ao Juscelino Kubitscheck, cancha que a prefeitura construiu para o clube local que, de tão abusado, pegou até o nome da cidade para ele. Não sei por que, talvez vocês possam me ajudar a explicar, não simpatizo com clubes que roubam o nome da cidade. Bem, lá, a Polícia Militar nos escoltou com tanto desvelo, os funcionários do estádio nos distribuíram ingressos de graça para as cadeiras, as pessoas estavam tão maravilhadas com a presença uma gauchada insana, que o clima ficou adocicado demais. Levei uns 15 minutos até soltar o primeiro palavrão.

Entre um impropério e outro nas cadeiras vermelhas do JK, saquei o quanto trabalhoso será meu ministério para acalmar uma alma xavante. A começar pelos amigos de infância do capitão Leandro Leite, que vieram de Piracanjuba, a uns 150 quilômetros de Itumbiara. Um deles gritou tanto no gol do Felipe Garcia que, no intervalo, andava pelas arquibancadas implorando por um dorflex, temendo que a cabeça explodisse.
– Calma, tchê! – lhe disse, enquanto alcançava o comprimido redentor.

Minutos antes, quando o Nena se foi roçando as coxas para cobrar o pênalti, recuando a bola para o Renan, nosso espaço no estádio se tornou, subitamente, nos metros quadrados com maior risco de eventos cardíacos em Goiás. Vendo aquele sofrimento coletivo que era possível tocar, resolvi berrar, mentindo a mim mesmo, o que, segundo Renato Russo, é a pior mentira.
– Não vai fazer falta! Não vai fazer falta!

A provação maior para a minha conversão ao budismo xavante, porém, mexeu com a minha paternidade. O Goiás empatou o jogo. Meu guri, o Inácio, me olhou nos olhos, implorando para que eu dissesse algo confortável. Só me ocorreu ser sincero:

– Porra, se perdermos, foi para o Goiás, cacete!

O moleque começou a gemer, depois a balir, depois a ganir, depois a uivar. Emitindo sons, conjugou todos os verbos que nos aproximam dos animais. Ao ouvir o silvo do apito do juiz, indicando o final da partida, me abraçou lívido. Pesava com uma folha de almaço, exaurido ao extremo. O guri vai aprender a sofrer menos. Temos 34 jogos pela frente.

Na manhã seguinte, mergulhei os pés nas águas do Paranaíba, em agradecimento pela lição aprendida. Mal entramos na BR-153 e minha mina colocou o pé no painel do carro, o que para mim consiste num das mais sublimes vistas do planeta. Serenei enquanto o asfalto sumia no retrovisor.

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Estou absolutamente convicto de que não ficarei catatônico até o jogo contra o… Paysandu.

> Link da comemoração do Inácio: http://www.youtube.com/watch?v=ovHI7Di2Ljg

Das coisas que a gente faz pelo Xavante | Fabrício Cardoso

Tocada a vento, a chuva retumbou na janela a madrugada inteira. Quando tocou o despertador, às 5h da manhã de 2 de novembro de 2015, a sinfonia dos pingos prosseguia. Adoro velar o sono da minha áureo-cerúlea, mas, naquele chuvoso amanhecer, senti algo além de ternura ao admirá-la ali, dormindo.

Era culpa.

Em minutos, ela sairia das quenturas da cama para dirigir pelas ruas escuras e úmidas do Centro de São Paulo, de onde eu tomaria condução para o Aeroporto de Guarulhos. Lá fui deixado, no ponto de ônibus. Ainda aquecido pelo abraço de despedida, a culpa foi virando uma saudade misturada com gratidão. Então redigi no uatizápi, enquanto sacolejava rumo ao meu voo para Goiânia:

– Obrigado por apoiar as minhas loucuras.

Uns segundos depois, soou o apito do celular. Era ela, ufa!, já estava em casa.

– Eu amo o jeito que tu ama o Xavante – respondeu.

Meus olhos ficaram mais úmidos do que as janelas do busão. Aquela compreensão expressa um amor que não tenta anular o outro, mesmo quando este outro flerta com o egoísmo em nome de paixões privadas. Foi especialmente tocante porque não temos ficado juntos nestes últimos amanheceres. Por contingências profissionais temporárias, de junho para cá, tenho desfrutado somente quatro dias por mês da companhia da minha família. Ao decidir embarcar de volta em pleno feriado para ver o Brasil, abri mão de 25% do tempo que tenho com eles. Não é pouca coisa.

Mas, nestas jornadas longe de Pelotas, bastam alguns minutos na companhia de outros xavantes para revermos nossos parâmetros de sacrifício pessoal. Nas arquibancadas do Serra Dourada, onde chegamos duas horas antes do jogo em respeito à nossa integridade física, topei com dois xavantes inspiradores. Tiago Reinherdt e Sandro Amaral são caminhoneiros. Rodam o Brasil levando riquezas. Talvez não tenham a minha sorte de gozar quatro dias por mês na companhia da família deles.

Mesmo assim, quando os cruzamentos da Série C começaram a nos empurrar para o Norte do país, ambos começaram a prospectar carretos no entorno das cidades onde o Brasil iria jogar. Foi assim, prestando serviços na região metropolitana de Fortaleza, que o Tiago testemunhou o Castelanazo.

Tiago Reinherdt e Sandro Amaral no Serra Dourada. Foto: Fabrício Cardoso

Espiritualmente embriagado por nosso triunfo, Sandro aceitou trabalhos na divisa de São Paulo com Minas Gerais, adiando o retorno ao Sul, para ficar a algumas horas de viagem de Goiás. Enfim, faz semanas que, movidos por esta alucinante paixão pelo clube, os tauras não põem o pé em casa. Tudo porque tem gente que os ama que ama o jeito que eles amam o Xavante.

Quando vi o chute do Wender explodir no travessão, no derradeiro pênalti, um formigamento se formou na minha garganta. A vontade de chorar me despertou uma segunda culpa no mesmo dia, porque, convenhamos, depois desde 2015, não temos direito a tristezas. Foi o abraço do Sandro, seguido pelo do Tiago, seguido pelo do Daniel, seguido pelo do Pablo, seguido pelo Narinho, seguido por tantos irmãos, que me devolveu a razão das coisas. Foi uma jornada de cuidado, esta em Goiânia.

Aliás, nem meu pai zelou tanto pela minha segurança num estádio de futebol quanto a Polícia Militar de Goiás. Até afrouxei meus ímpetos comunistas. Os caras nos buscaram na churrascaria nos repoltreávamos num rodízio. E nos escoltaram até o estacionamento do Serra Dourada. Quando saímos dos carros, nos ladearam com a cavalaria até o portão de acesso, garantindo que a reação hostil dos torcedores do Vila, que churrasqueavam às largas no estacionamento do  Serra Dourada, não passasse de coros repetitivos e monótonos questionando a nossa masculinidade.

Na volta, depois que todos eles deixaram o estádio com sorrisos de molar a molar, lá estavam os cavaleiros de novo, à espera destes gaúchos desvairados. Já estávamos meio cansados e a caminhada se deu num silêncio que me permitia ouvir o toque ritmado dos cascos dos cavalos no asfalto. Naquele ritmo, parecido com os pingos da chuva que batiam na minha janela, me dei conta que uma verdade incontestável.

Todos nós fazemos muito pouco diante do tanto que este clube nos dá.

Ganho até quando o Xavante empata | Fabrício Cardoso

– Estação Armênia, desembarque pelo lado direito do trem. Plim.

A voz feminina do sistema de som do metrô de São Paulo despertou-me súbita vontade de correr ao banheiro, naquela reação fisiológica típica de quem, de repente, se descobre autor de uma besteira. A Estação Armênia fica em direção ao norte, para os lados do falecido Carandiru, e o aeroporto de Congonhas, onde eu deveria estar em no máximo 30 minutos, refestela-se entre os prédios da Zona Sul de São Paulo.

Embarquei no vagão errado porque o Xavante acabara de empatar em casa com os polenteiros, cujas mãos ardiam queimadas pela lanterna há tanto tempo empunhada. Não era jogo para empate. Já havia até computado os três pontos na alma, como faço a cada Brapel. Portanto, precisava exorcizar as dores deste imprevisto.

Recorri ao uatizápi, dedilhando com fúria para os bruxos da Xasampa, todos também destroçados emocionalmente com o resultado. Absolutamente, não consigo, como os co-irmãos e tantos outras torcidas genéricas de boiada, imitar argentino. Como ficar de costas para o campo, pulando e cantando sob compasso primitivo, fingindo que não sentem nada? O Brasil de Pelotas é importante demais para mim. Não consigo negar sofrimentos.

Bueno, eu dedilhava no uatizápi. Esta tarefa terapêutica me impediu de verificar com a atenção necessária o sentido do metrô. Daí a cagada, só percebida com a voz lasciva da locutora do metrô.

Irrompi pela plataforma e, bufando, disparei estação afora, disposto a neutralizar a segunda maldade que o clube me impunha naquela noite. Numa sorte imerecida, flagrei um táxi parado no semáforo em frente à estação.

– Estás livre? – perguntei por retórica, já arremessando a mala no banco traseiro.

Resumi brevemente meu vacilo antes de externar ao taxista a urgência, que roçava o limite do impraticável, mesmo num domingo à noite.

– Acho que dá – tranquilizou-me.

Não foi a única paz que ele me despertaria pelos próximos 13 quilômetros, percorridos com serenidade, sem qualquer agressão às leis de trânsito vigentes, apesar da aflição do passageiro.

Não sou de me alongar em conversas com taxistas, porque me parecem repetitivas. Depois das considerações sobre o clima, a maioria deles reproduz o discurso do Feicebúqui de meus amigos que batem panela em sacada, quando não desbancam para uma religiosidade mais cosmética do que sincera. Mas este cara falava com a mesma mansidão do que dirigia.

– Tu tens filhos? – indagou, agora percebo, como pretexto para introduzir o assunto que lhe dá sentido à vida.

– Tenho dois. E tu?

Então, com um orgulho genuíno e por isto mesmo comovente, o taxista começou a discorrer sobre a família. Tem 39 anos e cinco filhos. O primogênito, hoje com 22, veio ao mundo por um descuido juvenil que ele considera a maior bênção da existência. Não apenas pelo filho, mas pela oportunidade de estabelecer um laço consistente com uma mulher, nas palavras dele, “perfeita para a vida que eu sonhava”.

Houve um encontro de sonhos, deduzo, pois vieram mais quatro filhos: de 20, 16, 12 e seis anos. Aos domingos, pega o táxi só quando o sol se põe, porque nada lhe dá tanto prazer quando uma tarde ao lado dos seis, desfrutada lentamente depois do compartilhamento de uma mesa farta. Quando a coincidência de uma corrida lhe conduz para perto de casa, passa para comer uma fatia de bolo com a caçula, curioso sobre as novidades da escola.

– Ano que vem faço bodas de prata. Como não me considerar um homem de sucesso?

Não respondi, mas a pergunta me desassossegou. O sujeito transporta gente dita bem-sucedida, sempre transtornada pela pressa na cidade mais rica do país. Talvez tenha algo a nos ensinar a respeito de metas. O desfrute de 25 anos de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida, para ele, soa mais excitante do que o melhor Ebitda, o melhor Ibovespa, o melhor balanço.

Não consigo discordar do taxista, mas saí daquele carro com uma certeza: até quando empata, o Xavante me faz ganhar.

É infinita a capacidade deste time de nos aproximar de gente legal. Em resumo, ser xavante é uma bênção tão grande quanto encontrar um amor digno de ser vivido 25, 50, 70 anos. Se o taxista fosse rubro-negro, certamente concordaria comigo.

Conosco?

Um grito explodiu no 15º andar na terra do capitão e do Wender | Fabrício Cardoso

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Goiânia conseguiu a proeza de transformar a matemática numa ciência inexata. As ruas da cidade talhada há pouco mais de 80 anos numa gleba poeirenta do Cerrado são predominantemente designadas por números. Mas isto está longe de ser um conforto para forasteiros recém-chegados. O taura vai caminhando, tão tranquilo quando o sol inclemente permita, e vê que a rua 10 é sucedida pela 11. Beleza, o cérebro se acalma com a provável previsibilidade. Confiante, abre um sorriso e avança até a próxima esquina quando daria de cara com a… 12? Errado. Ali é a 164.

Foi por coisas assim que não consegui serenar quando soube que o churrasco da Xavantes de Goiás, a Xago, seria, nas palavras do anfitrião Daniel, “na 1, acima da 10.” Pelo menos tive a sagacidade de confirmar o bairro, porque, talvez por megalomania dos colonizadores, existe muitas ruas 1 espalhadas por esta jovem capital. Sob a luz da lua azul (sem amarelo, porque não era segunda-feira), fui serpenteando as esquinas escuras do Setor Oeste, até chegar ao prédio compatível com a descrição do Daniel. Enquanto me aproximava da portaria, pleno de dúvidas sobre o endereço, ouvi um coro repentino explodir no 15º andar.

– Goooool! Porra! *@#@*&@*@@!!

Senti a perna afrouxar. Era o terceiro, do Leandrão, o da virada. Havia deixado a firma ainda embriagado com o balaço do Amado, garantindo o dois a dois até ali.

– Foi gol do nosso time! – gritei ao porteiro, que, confuso diante de uma frase desconexa, permitiu meu acesso.

Embarquei no elevador, naquele último estágio antes de amigos virtuais se fazerem de carne e osso. Desci na cobertura, onde o Daniel me esperava com um abraço e um beijo na bochecha.

– Viramos!!

Estávamos literalmente nas alturas, porque o Xavante tem esta propriedade de nos levitar, independentemente de estarmos no alto de um arranha-céu ou com o peso somado em três dígitos. A gente sempre alça voo quanto este time nos entrega um sábado como o de ontem.

Fui encaminhado a uma sala, onde a narração dos caras da TV Brasil pontificava. Cumprimentei todos, um por um, mas depois patrocinei uma grosseria que só xavantes são capazes de perdoar. Lembre-se que jamais havia encontrado pessoalmente ninguém ali, teríamos muito o que prosear. Mas, depois de breve inspeção visual, me vi entre os meus.

Então entreguei-me a este suplício que minha mina e meus meninos entendem como sofrimento teatral, mas que na verdade é uma reação natural do corpo às emoções em mim provocadas pelo clube. Fiquei arqueado, andando de um lado para o outro e, quando o juiz anunciou seis minutos de desconto, sai da frente da televisão. Contive o desmaio agarrado a uma grade perto da churrasqueira, até o apito final me devolver a capacidade de suportar a vida. E enfim desfrutar a companhia de gente por demais especial.

*

A Xago é a caçula entre os núcleos de xavantes desgarrados. Foi fundada em fevereiro do ano passado, naquele Brapel em que o Nena enfiou um testaço neles, em pleno salão de festas, quando eles ainda disputavam o Gauchão. Faz tempo, pois. Concentra gente com astral do saudoso Mafuá das Artes, embora seja de responsabilidade do leitor qualquer ilação com o consumo de drogas ilícitas.

Falo isto porque há um desprendimento vital entre todos. O Daniel, talvez o mais são, viveu anos em Israel. O Pablo tem formação em Artes e é professor de Museologia na Universidade Federal de Goiás, profissão que nenhum pai sonha para o filho, mas nós, pelotenses, eternos aspirantes a poetas, tratamos de ocupar quando aparece vaga por aí. O Gabriel fala como goiano, encurtando palavras, usando “trem” como sinônimo de “troço”, mas, por ter nascido em Pelotas, exerce com ardor o sacerdócio de ser xavante.

Uma comunidade tão diversa atrai pessoas igualmente plurais. A Roberta, mulher do Daniel, disse que nunca mais conseguiu simpatizar com outro time depois de estar no meio de nós, amém. Tanto que ela responde pelo setor de logística da Xago, com resultados questionáveis até aqui. Ano passado, para o jogo em Muriaé, eles fez todos pegarem um voo para BH, quando o mais estratégico seriam os aeroportos do Rio. Mas serviu para a Zona da Mata mineira conhecer uma torcida devotada, pois, se depender de Juiz de Fora e Tombos, eles estão na lama.

Tem ainda o Tariahn, advogado criminalista, mestrando em Direitos Humanos, um currículo que a turma que sai em passeata pedindo “impítima” definiria como protetor de bandido. Eu, que venho do astral do Mafuá, simpatizei com o cara. Torcedor praticante do Vila Nova, ele adotou o xavante como segundo time porque, segundo ele diz (não esqueçam que se trata de um advogado), somos muito parecidos na devoção sem grandes exigências em troca. Basta que o clube continue a existir de forma honrada.

*

Aliás, o Tariahn me fez refletir como os goianos se parecem conosco. A começar pelos filhos desta terra que são titulares de nosso amado time, o Wender e Leandro Leite. Ambos sintetizam a alma desta gente.

Aqui as pessoas são extremamente generosas, destas que, quando a cozinha do buteco se atrapalha e traz um prato antes do outro, ficam com o frio para que possamos comer o quente. Juro, recebi esta gentileza que, de tanta bondade, constrange. Wender e Leandro Leite também são generosos, pois correm, suam, deixam um pedaço de si dentro do campo e ainda servem os outros para um golzinho e outro. Tudo com uma altivez que nos emociona.

Também como Wender e Leandro Leite, em Goiás se trabalha com obstinação e disciplina e, salvo os sujeitos do sertanejo de shopping, sem almejar o protagonismo e conquistas continentais. É como se o sentido de tudo não estivesse nos fugazes momentos de sucesso, rapidamente sucedidos por fracasso, mas na satisfação de uma rotina desfrutada com leveza e celebração dos pequenos momentos.

Por isto eu jamais me canso de agradecer aos céus a glória de ter nascido xavante. Por mais distante que a vida nos leve, as coisas que nos fazem amar este clube sempre estarão presentes, evitando a solidão. Até mesmo quando a matemática não ajuda.

Fabrício Cardoso

A maior de todas as taças

Pensei em contar esta história partindo do pressuposto de que coube ao Brasil de Pelotas consolidar a utopia de Juscelino. A Brasília criada pelo presidente que pensava ao longe, concebida para nos solidificar geográfica e moralmente como país, assumiu o papel centralizador de nossas safadezas. No país imaginário onde vivemos, só habita gente honrada e honesta, impedida de se tornar uma Suécia pelos inquilinos do Planalto Central.

Mesmo sem compactuar com esta visão simplista, vesti a camisa da Pênalti da temporada de 1998, a mesma envergada no jogo vencido em campo e perdido nos tribunais lá em Santo André, três espinhosos anos atrás. A opção pelo figurino da partida do rebaixamento refletia meu desejo de encerrar um ciclo sombrio e imerecido. Brasília ia enfim patrocinar a Justiça, pelo menos para um bando de brasileiros ao Sul do Sul. Bem, este era o roteiro mentalmente formulado. Mas o que houve na tarde de 19 de outubro de 2014 foi algo emocionalmente tão denso, que recorrer a um clichê seria desonesto – com Brasília e conosco.

Enquanto dedilho este texto, lá se foram 48 horas desde que, a uns 150 metros de distância, vi o Forster sacolejar a rede dos caras no pênalti derradeiro. Ali perdi os sentidos. Se meu peso não fosse medido em três dígitos, diria que levitei pelas arquibancadas. Quando recuperei a consciência, estava encostado no alambrado do Serejão, gritando frases desconexas de gratidão ao Rogério. Suponho que ele tenha entendido. E até agora estou aprisionado num pensamento incapaz de sair da órbita das emoções vividas no final de semana.

Lembro de um rapazote diante do Congresso Nacional, que, aturdido com a quantidade de gente com a camisa do Xavante, tomou coragem e me abordou.

– Tchê, sou de Pelotas, sou xavante, mas moro há muito tempo fora. Por que estão tantos de nós circulando pela Esplanda dos Ministérios?

Respondi enciclopedicamente e cassei-lhe o direito de se declarar xavante. Não existe xavante não praticante. Ou se é, ou não se é. Ponto. Cumpra-se.

Lembro do Vanderlei do Free Shop do Aeroporto de Brasília. Veio até nós, quando corríamos para não perder o voo de volta a Sampa, salivante, perguntando quanto fora o jogo. Revelou ser sócio do clube e praguejou contra o patrão, insensível a ponto de negar-lhe uma folga em dia estratégico. Mas estranhei a narrativa feita num pronunciado sotaque do Cerrado, algo entre o mineiro e o baiano.

– Sou de Brasília, mas vivi durante 16 anos em Pelotas. Voltei em abril para cuidar do meu pai, sou filho único. Quando botei os pés na Baixada, no final dos anos 90, desisti de ser flamenguista na hora.

Lembro da forma triunfal como irrompemos o Eixo Monumental na boleia da Kombi do Carlos Leite, colega com quem trabalhei no Vale dos Sinos 15 anos atrás e, a despeito deste distanciamento cronológico, ainda estava suficientemente perto para me buscar no aeroporto. No domingo, já o flagrei vestindo a camisa Wilson, temporada 2011, que lhe presenteei. Valeu, Leite!

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Céu de Brasília no dia do acesso

Lembro do meu ceticismo religioso fraquejando, quando, ansioso, despertei junto com o sol no Distrito Federal. Da janela do hotel, divisei o horizonte tingido de vermelho e preto, como atesta a foto. Não estou daltônico, né? Por favor, atestem minha sanidade mental e ótica! Se o João de Santo Cristo de Faroeste Cabloco ficou bestificado com a cidade, a cidade ficou bestificada com o Xavante.

Lembro, sobretudo, da mais linda reação coletiva vista por mim não só naquela tarde, mas em toda a jornada da quarta divisão. E falo como testemunha privilegiada. Fiz uns cálculos que, divulgados fora de contexto, poderiam inclusive abalar a solidez do meu matrimônio. Rodei 2,2 mil quilômetros e voei 1,3 milhas aéreas atrás do meu clube. Só divulgo os números com alguma segurança porque cheguei a eles sob a companhia carinhosa e paciente da Nêga Velha e dos meninos, por mim arrastados a Itu e Cabo Frio. Estou muito longe de ser o único. Sob os desérticos 35 graus com 15% de umidade de Taguatinga, identifiquei rostos que, um mês antes, estavam sendo acariciados pela brisa do mar na Região dos Lagos. Nunca estivemos tão firmes neste propósito de não deixar o Xavante jogar sozinho.

Falava da cena bonita. Pois bem. Logo depois da vitória, estive à beira de um desmaio, mas, agarrando-me aos sentidos sobreviventes, notei muitos sacando o celular e dedilhando com ansiedade. Quando alguém atendia do outro lado, desabavam em prantos.

– Só consigo lembrar de ti!

Lembrar, lembrar e lembrar. O escritor inglês Nick Horbny diz, em “Febre de Bola”, livro onde narra suas sandices pelo Arsenal, que a obsessão pelo futebol, sobretudo quando o clube ajuda a compor nossa personalidade, é uma manifestação de carência. Porque o que o sujeito deseja, lá no íntimo, é o conforto de sentir os outros lembrando dele ao saber alguma coisa do tal time. Hornby é um sábio. Inventamos obsessões particulares em razão do outro. São os humanos quem nos fazem mais humanos. A gente viaja longe para ficar mais perto.
Acho que a coisa é mais ou menos assim: o Xavante nos ajuda a amar. Não só ele, mas os outros.
E isto, meus amigos, creiam, é a maior de todas as taças.

*

Antes de encerrar, me permitam uma metáfora particular. Comecei esta viagem às 4h da madrugada de sábado, dia 18, na estação Sumaré do metrô paulistano. Viajei sozinho num vagão cortando as entranhas de uma cidade com 11 milhões de habitantes, coisa incomum. No domingo, perto das 19h do dia 19, embarquei no metrô de Brasília numa condição completamente diferente. Desci na estação Concessionárias, em Águas Claras, mas aquele trem jamais descerá de mim.

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A comparação destes dois momentos talvez seja o melhor jeito de representar como o Brasil de Pelotas preenche nossas vidas.

Fotos: arquivo pessoal

Fabrício Cardoso