O guri que chora pelo Xavante | Fabrício Cardoso

O estádio Soares de Azevedo ainda cheira a tinta. Não conheci um habitante de Muriaé que não se derretesse de orgulho pela cancha, erguida “sem nenhum centavo público”, enchem o peito para dizer. Encaixadinho numa colina, respeitando o relevo acidentado da Zona da Mata de Minas Gerais, destoa da aridez poirenta nos arredores do Km 274 da BR-356.

Pouco depois das 19 horas de domingo, 16 de novembro de 2014, eu estava lá dentro, triturando as unhas com os molares, à espera da decisão por pênaltis. Notei uma agitação incomum nos companheiros encostados no parapeito, rente ao gramado. A Polícia Militar havia composto uma formação em linha diante da nossa torcida. Aos poucos, uma notícia correu arquibancada acima, em efeito telefone sem-fio. Coube ao Fábio Dutra, o rubro-negro mais fanático da Avenida Paulista, me dar o recado.

– Se o Xavante ganhar, não precisa pular para dentro do campo. A PM vai abrir o acesso ao gramado pela escada.

Até os soldados da PM de Minas sabiam que o Brasil de Pelotas estava muito perto de mais esta taça. Tínhamos chegado ali sem parar de cantar. Aí mora toda a dor por um infortúnio insignificante diante de um ano tão vigoroso. Colher a derrota nos movimentos derradeiros do certame é como tirar doce da boca de criança. Bem, não gosto de chavões, mas lancei mão deste como introdução para o ponto nervoso deste texto. A cada domingo como este, precisamos de alguma forma engrossar o couro emocional dos filhos para suportar o peso das frustrações esportivas.

– Eu devo ser louco. Estou acordando à uma e quarenta e cinco de um domingo para ver o Xavante.

Inácio é um veterano dos jogos do Brasil. Aos seis meses de idade, quando o sujeito ainda se desequilibrava sentado sobre as fraldas, introduzi-o nas artes de frequentar a Baixada. Em 2010, testemunhou sem soltar um bocejo o zero a zero medonho contra o Juventude, na falecida Série C, não esta aí, que estamos tão feliz por voltar. Até arriscou um comentário tático, que gravei enquanto controlava nos beiços a excessiva produção de saliva.

Mas, neste domingo, ele experimentaria algo novo. Pela primeira vez, subiria numa excursão de torcedores. Entre ida e volta, seriam 20 horas apertado na van alugada por xavantes residentes em Curitiba e São Paulo. Um experiência talvez sufocante para um menino de 13 anos. Tratei de eliminar qualquer concessão à preguiça.

– Tu vais ver nosso clube na final com 13 anos. Estou aqui, gordo e grisalho, e nunca vi – respondi.

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Foi um exercício retórico desnecessário, percebi depois. Quando o cara se acomodou no ônibus, se impregnou da excitação de todos viajantes e sorriu. Ali eu cri que ele não viajava para agradar o pai. Viajava por uma necessidade pessoal e intransferível de ver o Xavante em campo. “Não importa onde jogar, sempre vou te apoiar”, diz o cântico. Há de se ter coerência entre teoria e prática, oras.

Bueno, não vou chateá-los com pormenores de nossa experiência de pai e filho ao longo deste domingo, sob pena de ficar meio piegas. Vou me ater ao anticlímax da viagem. O Leo Dias errou o pênalti e, olhando um ao outro em desespero, fomos ao limite da nossa matemática até entender que o próximo, se convertido, daria o título ao Tombense. E assim foi. Ato contínuo, o Inácio me abraçou e foi descendo até minhas pernas, como se quisesse desaparecer no meu colo. Aquela experiência me trouxe os sentimentos ainda vivos de uma tarde do verão de 1981.

Estava com oito anos. Já morávamos em Porto Alegre. Meu velho, à época com menos idade do que tenho hoje, me levou para ver o Xavante contra o Inter, no Beira-Rio. Ficamos na arquibancada oposta ao Guaíba. Dali, vi o Silvinho, um ponta-esquerda negro e franzino, fazer o primeiro do Colorado. Busquei o olhar do meu pai e ali encontrei algum conforto. Mas quando o Silvinho fez mais dois, rapidinho, não suportei e caí num choro convulsivo. Custei a sentir a pressão dos braços dele me envolvendo. Tenho severas dúvidas se hoje, 33 anos depois, consegui me acalmar. Este negócio de ser xavante, a rigor, é um desassossego.

Com meu filho ali deitado sobre mim, imaginei como deve ter sido difícil também para o meu pai. A gente apresenta o futebol como uma norma cultural, e depois
transborda de culpa ao ver o filho sofrer por algo que, em tese, daria para viver sem. Eu só fui me recompondo do mal que o Silvinho me fez porque senti que aquele choro me distinguia. Um dia, entrei na Baixada e vi meu Tio Nadir, um xavante que me deixou muita saudade, falando sobre mim enquanto cutucava o companheiro com o cotovelo.

– Aquele é o guri que chora pelo Xavante.

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Na saída do Soares de Azevedo, o Inácio começou a ser consolado pelos companheiros da excursão. Diziam que, se ele quisesse mesmo seguir o sacerdócio, deveria se preparar para viver ainda muitos momentos de desconsolo como aquele. O cara se animou um pouco. Se aqueles caras chegaram à idade adulta confiantes, é porque a dor uma hora iria passar. Numa cidadezinha na divisa do Minas com o Rio de Janeiro, paramos e o Inácio mandou ver um pão com linguiça de dimensões amazônicas. Estava recuperando o apetite, via-se.

Depois do jantar, voltamos ao ônibus e ele se acomodou no banco ao meu lado. Encostou o rosto no meu ombro. Não demorou muito, senti seu corpo desfalecer por um relaxamento muscular. Já estava num estágio de sono mais profundo. E ali, sacolejando de volta para São Paulo, tive certeza de que o guri, que também chora pelo Xavante, tem envergadura emocional para levar esta paixão adiante.
Se Muriaé tem orgulho de seu estádio, eu tenho orgulho de todas as crianças que amam o Xavante.

Fotos e vídeo: Arquivo pessoal Fabrício Cardoso

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